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  • Ricardo Pimenta

Do acaso, do absurdo e do real


Albert Camus, em "O mito de Sísifo", publicado originalmente em 1942, escreve que "Compreender o mundo, para um homem, é reduzi-lo ao humano, marcá-lo com seu selo". Cinquenta e quatro anos depois, Song Dong fotografou uma performance artística em que, por uma hora, golpeava - utilizando um enorme carimbo - a superfície do Rio Lhasa, no Tibete. O carimbo continha um único símbolo: o caractere chinês para "água". Veja aqui, vale a pena!


Sim, é difícil discordar de uma imagem tão clara quanto a essa do artista, cuja obra está exposta lá em Nova Iorque, no Met. Ou do imortal Camus, o segundo escritor mais jovem a ser laureado com o Prêmio Nobel de literatura. A mensagem é muito clara: estamos divorciados do real, há uma névoa que nos permite ver apenas algo imperfeito, cujo significado nos assusta porque nos elude. Com isso, classificamos, simplificamos, reduzimos. Nossa realidade é nada que não nós mesmos. Camus chamava esse divórcio entre o real e o percebido de absurdo. O filósofo franco-argelino dizia, insistente, que qualquer um de nós poderia ter a percepção súbita do absurdo durante essa existência pouco questionada - pouco percebida, até - que torna o hábito nosso condutor, o corpo nosso senhor. Poderia ser depois de semanas e semanas trabalhando, até um dia se perguntar o por quê disso tudo. Ou então ao atravessar a rua, em alguma atividade corriqueira.


Reduzimos ao humano, de fato, este todo que nos circunda; tornamos mera extensão nossa. Fazemos, arguo, o mesmo com as relações humanas - como indivíduos isolados em nós mesmos, entendemos as emoções dos outros apenas como nossas, projetadas naquele outro que não nos faz sentido.

Como um artista performático nas águas gélidas de um rio tibetano, estampamos os outros (e a realidade fugidia) utilizando nossa própria construção como gabarito. Somos violentos assim, fugimos do absurdo por meio do conforto desta falsa compreensão. Talvez entender esse estranhamento seja alguma forma de elevar nossa percepção de nós mesmos. Talvez haja, de fato, a alteridade de Hegel, e dela nasça aprendizado. Talvez ver o estranho, aquilo que nos foge à compreensão, seja um primeiro passo a caminho da compreensão de quem somos, daquilo que fomos feitos e que nos conduz durante o resto de nossas vidas. Talvez não. A prisão que somos, possivelmente, é impenetrável. Em meu primeiro livro, Um caco de telha, Nina diz, perplexa, que: "Nós somos a nossa prisão; a liberdade é o outro. Mas o outro não existe. Não existe. Só recebemos migalhas e esmolas que criamos, sobre o outro, à nossa imagem e semelhança. Mera imagem que se sobrepõe."


Em meu novo livro, cujo título ainda sou reticente em apresentar, para que mantenha minha liberdade de mudá-lo, Pedro se vê preso nesse mesmo lugar de Nina. Decerto sua dúvida existencial é a mesma. Para quem leu meu primeiro livro, alerto que não há o que se preocupar - Pedro não é Álvaro, é outro tipo de condenado. Pedro é um romântico. Quebrado, sim, mas veste sua desesperança como fantasia. No fundo, acredita em seu coração. Pedro, enfim, é acertado em cheio pelo absurdo de Camus. Logo no começo do livro, Pedro exclama, personagem proto-romântico que era: "Eu sou o deus que cria a essência que delega ao acaso importância." Sim, os deuses não fazem promessa, como disse Schiller. Mas a história que contamos ao espelho cria alegorias fantásticas por demais.

 

Ricardo Pimenta é autor do livro Um caco de telha. Escreveu também o conto "Retasada" na antologia Setenário Sombrio. Escreve também poemas e outros textos, aqui e no Instagram (@autor.rpimenta).

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