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  • Ricardo Pimenta

Do canibalismo que assola a alma *

Ao abrir os olhos, estou novamente naquela floresta onde vi os navegantes que haviam chegado, em outra vida. Dentro da minha cabeça, o primeiro movimento da Sinfonia do Novo Mundo começa a tocar. O sol do meio da manhã espalha seus raios por sobre a relva que me cerca e ouço, misturado ao som da sinfonia, pássaros cantando ao meu redor, junto com um zumbido persistente, como se fosse época do canto de cigarras, ou de algum outro inseto que canta porque é só isso faz, não porque é isso que quer fazer. Não me lembro bem do que os navegantes fizeram, mas os vejo novamente à distância, caminhando por entre a floresta. Vejo novamente suas duas almas – agora me parece que pertencem à floresta. Presto atenção especial àquela segunda alma que lhes flutua por sobre o corpo. Me parece que estou procurando algo! Encontrar esse “algo” é a coisa mais importante agora. Sinto um desconforto na sola dos pés, e quando olho para baixo noto que estou descalça, e que o que sinto são os pedregulhos e galhos secos sobre os quais estou pisando. Folhas secas se entrelaçam com meus dedos dos pés, e sobre meu pé esquerdo vejo uma flor que deve ter caído de alguma árvore. Quando a pego na mão, noto imediatamente que ela não combina com o lugar onde estou. É uma flor linda, que gosta de flutuar por sobre águas turvas. Penso que a flor de lótus – sim, era uma flor de lótus – está acostumada a não combinar com o lugar onde está. Olho para meu pé e noto a marca que a flor deixou – devo ter tido uma pequena reação na pele ao contato de suas pétalas. Olho ao meu redor e me vejo só. Não tenho duas almas como todos os outros? O que será que me aconteceu? Sinto uma solidão que confundo com uma sensação de frio. Caminho lentamente, seguindo por uma trilha natural na floresta. Não sei como, mas consigo entender essa trilha com facilidade. A floresta me parece minha casa, e estou acostumada a viver aqui. Lembro-me de uma vez em que visitei uma fazenda de reflorestamento de eucaliptos. Aquelas fileiras de eucaliptos, todos em uma linha reta e lógica, tinham um aspecto um tanto quanto irreal e artificial, ainda que o cheiro do eucalipto pudesse ser sentido. Essa floresta aqui é real. É caótica, desorganizada, surgiu não por planejamento, mas pelos mesmos mecanismos que geram toda a vida na terra. Era fruto do acaso somado à adaptação. Sinto-me leve, e noto que não estou mais andando, mas sim voando sobre a terra. Olho para meus braços e vejo que viraram asas. Estou voando, livre como Sísifo. Meus pensamentos não estão mais fazendo sentido, mas sinto-me libertada apesar disso. Não, melhor, sinto-me libertada por causa disso. Fazer sentido agrilhoa ao ponto de tudo perder seu encanto. Percebo isso agora, com uma clareza que me parece uma chama acesa dentro do fornilho de um cachimbo. Ao seguir na trilha, vejo outros animais que me parecem habitados por almas de pessoas. Ou seriam almas de pessoas transformadas em animais? Lembro que os Jarawara da Amazônia enterravam os corpos de seus entes falecidos, e após três dias (ou seria no terceiro dia?) saíam espíritos animais de seus cadáveres em decomposição. Um desses espíritos era especialmente perigoso – era um canibal que procurava matar quem estivesse em seu caminho! Em algum lugar – ou em minha mente – ouço a sinfonia tocando, incessante, me impelindo a agir. Sou a floresta, e sou a sinfonia, agindo sem planejar, conduzida por um acaso adaptado. Como todos. Sinto uma fome intensa me dominar. A música segue em um crescendo, e os metais anunciam o que vou fazer antes que eu o faça de fato. Ataco um pequeno gambá que vejo no galho de uma árvore – um desses roedores quaisquer – e me alimento dele. Ao rasgar seu corpo com meu bico recurvo, segurando seu corpo com minhas garras, noto que algo eflui de dentro dele, como se fosse a fumaça de um cachimbo subindo durante seus momentos latentes. Ao sentir o gosto de sangue, sinto-me viva! Sinto que estou forte, excitada, e que nada pode me segurar! A sensação é maravilhosa! Quero mais sangue, e ninguém pode me deter. Ataco outro roedor, com a mesma voracidade. Sinto apenas uma frustração de não conseguir abocanhar também aquilo que dele eflui, mas a adrenalina traz uma sensação que, se não de saciedade, enche meu espírito de prazer. Voo com força redobrada, seguindo a trilha, até chegar a uma abertura na floresta. Ao voar para a abertura, vejo um lago rodeado por pedras enormes. Essa cena combina com a floresta, mas me parece adicionada, como se fosse um quadro em que uma porção houvesse sido pintada depois. Circulo ao redor do lago, para ver se há algo de diferente por aqui. Noto, sobre uma das pedras, um homem segurando um cachimbo na mão. Não consigo ver seu rosto, mas percebo qualquer movimento que faça. Está sentado, vagarosamente fumando um cachimbo à beira do lago, contemplando algo que não consigo imaginar. Pouso no galho de uma árvore logo atrás dele – não quero ser vista. Algo nele me impele e me incomoda. Sinto-me confortável e estranha, como uma bela flor de lótus quando flutua por sobre águas turvas. Me parece mesmo que algo me conecta a ele, como se ele fosse o lodo e nossa conexão minha raiz. Noto a fumaça que sai de seu cachimbo subindo em qualquer direção, dispersando para lá e para cá. Um filete dessa fumaça voa até mim, e sinto seu cheiro preencher meu corpo inteiro. É um cheiro que conheço, mas que me é estranho. De repente, ele pula na água, e meu coração dá um salto imediato de susto e de excitação! Tento pensar em quem aquele homem pode ser. Tenho medo de que seja um caçador. Ou que seja um navegante. Mas estou em outro período, não mais no período dos navegantes. Sei disso. Tenho medo, e ao olhar para ele, nadando no meio do lago, vem a memória de uma dor. Minha conexão com ele não se desfaz com a distância aumentada entre nós. Será que ele me causou dor no passado? Felicidade? A imagem de dois olhos tristes e cheios de amor me aparece na mente. Não posso confiar nele, disso tenho certeza! É uma intuição que preenche todo meu ser. Sentada aqui, pousada em um galho de árvore, começo a ruminar meus sentimentos. A elação que me preencheu quando senti o gosto do sangue daquelas almas que tentei abocanhar, mas que me fugiram do bico em espirais de fumaça, começa a esvaecer, e em seu lugar sobra uma sensação de solidão e de incompletude. Estou incompleta; algo me falta! Estou desconectada de mim mesma, e sinto que essa alma está fadada a repetir o ato horrível e delicioso que acabei de cometer! Essa minha alma, me parece, passará toda sua eternidade em busca de consumir tudo ao seu redor, sempre dentro dessa floresta, ainda que apenas para preencher esse vazio deixado dentro de si. Começo a sentir um sono intenso, mas reluto. Seria perigoso dormir aqui. Tento me segurar à consciência, pensando na sinfonia que tocava agora há pouco. Em algum momento, o sono me vence, e começo a me entregar para aquele plano de perda de consciência. Um pensamento entra em mim com uma violência contumaz. Lembro de uma estrofe de um poema que eu escrevi, ou que alguém me leu – isso já não lembro mais:

Não há luz que venha da lua Que em mim não encontre fluir Sou um corpo vazio, sem essência Um castelo esperando ruir

Não sei mais onde eu começo, onde começa quem me fez, e onde termina quem eu sou. Tudo começa a escurecer ao meu redor. Sinto uma força me puxando com força, conduzindo minha consciência para algum lugar que não era mais aqui.


 

* Trecho do capítulo 10 do livro Um caco de telha, de Ricardo Pimenta.

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