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  • Ricardo Pimenta

Os moinhos de Cervantes *


(...)

Uma vez leu Cervantes, deve ter sido em outra vida. Lembrava-se da imagem dos enormes moinhos de vento, os gigantes de Don Quijote, que o prometiam glória e riquezas, em meio a lutas épicas. Aqueles moinhos de vento de Cervantes eram uma metáfora perfeita. Não se sabe quem os criou, mas há relatos de moinhos de vento na Pérsia no século IX, e há quem atribua ao grego Heron de Alexandria, no primeiro século, a invenção de um engenho movido a vento. Os moinhos de vento à época de Don Quijote tinham a função de converter a energia do vento (os engenheiros a chamam de energia eólica) em energia cinética, que fazia rodar os eixos dos moinhos para que girassem uma mó – a pedra utilizada para moer os grãos (principalmente o milho) e formar farinha. Era um simples mecanismo que convertia o vento, livre, em uma energia contida e direcionada. Era uma boa figura de expressão. O moinho era a conversão do vento em ação. Sem o moinho, e vento permaneceria vento, etéreo e livre; bastava a presença do moinho, porém, o vento era convertido em movimento – algo com alguma finalidade e, portanto, sem liberdade. Ao fazer algo para algum fim, não há mais liberdade alguma de ação.


Para Álvaro, o moinho era central – era a representação perfeita da briga perene entre os desejos que aparecem como o vento e o curso determinado por sua história pessoal. Era um vento soprando sobre um córrego – nós, em nossa inflexibilidade, o córrego, seguindo seu curso em completa abnegação, e o vento, os desejos escondidos de nossa consciência. Nossos sonhos. Foi Jens Peters Jacobsen que disse que nossa vida tem exatamente o valor que nossos sonhos a dão, e nada mais. O córrego existe, e flui rumo ao seu desfecho, desimportante. É o vento, que cria ondulações na superfície serena do córrego, que o dá valor. E, em nossa condição humana, nós somos o próprio Don Quijote de la Mancha – atacamos nossos moinhos durante a vida inteira, ainda que somente para que o vento continue a soprar sobre o córrego, ininterrupto e livre, não traduzido. Às vezes, perdemos a luta, e o moinho se faz. Nestes casos, resta apenas estudar, retrospectivamente, as consequências disso. O vento sopra no moinho que, ao girar suas pás, gira a mó. Essa mó destroça algo em nós, para formar um algo novo, diferente do que fora. O moinho faz ruir o nosso castelo, apenas para tentar reconstruir algo diferente. Como se isso fosse possível. “É”, pensou Álvaro, “o desejo faz isso com a gente mesmo”.

(...)

 

* Trecho do Capítulo 17 - Apóstrofe de Um caco de telha. Veja mais aqui.

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